domingo, 3 de janeiro de 2010

Já não é verão

O carro parado. A janela aberta. O som do mar. O chiar dos pneus. As vozes dos passeantes. O livro aberto. A música do rádio. Os gritos das gaivotas. A chuva no pára-brisas. O vento a cantar pela fresta da janela. As nuvens cinzentas. Os candeeiros alinhados. A praia deserta. Os carros estacionados. A placa de sinalização a piscar. A página 11 do livro. As casas desertas. O sol entre as nuvens. As ondas em séries perfeitas. Um cão a cheirar o muro. O telemóvel não toca.

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O ar sabe a verão. O mar tem a cor de verão. A areia nos pés lembra o verão. A minha pele respira verão. Sinto no corpo as manhãs de brisa suave que mais tarde se transformam em tardes de sol escaldante.

Encosto o corpo na barraca abandonada junto à praia. Volto a cara para o sol como um girassol à procura de cada raio redentor do astro quente. O som do mar acalma a devastação interior que me consome. As nuvens desenham formas quase humanas no céu azul.

O mar assemelha-se a prata reluzente. Lambe as rochas presas na areia, as rochas que se deixam descobrir aos poucos e poucos, depois de cada série perfeita de ondas repletas de espuma alva. Dois ou três barcos quebram a linha perfeita do horizonte. As vozes dos transeuntes sobrepõem-se ao som pacífico do mar. Um cão corre louco pela praia deserta. Afinal não estou sozinha e outros sons vêm quebrar a minha languidez de início de tarde.

Tiro os óculos escuros e fecho os olhos. Deixo o sol escaldar na minha face. Agora só vejo tudo vermelho, laranja, pontos de luz difusos. Abro os olhos e está tudo na mesma. Volto a fechar os olhos porque quero voltar a ver tudo rubro. Rubro a cor da minha alma.

Apetece-me estender o corpo na plataforma carunchosa da barraca abandonada. Deixar-me adormecer sem hora marcada para acordar. Acordar mais tarde, muito mais tarde, e esperar que ainda esteja tudo no mesmo lugar. O mar de prata, a areia molhada, o cão a correr, a mulher que rói uma maça sentada no muro de pedra, o pescador ao fundo, os barcos que cortam o horizonte, as nuvens fofas.

Agora observo a serra do meu lado direito. Os prédios de alturas inconstantes do meu lado esquerdo. E deito-me na plataforma carunchosa da barraca. Abandono-me aos raios de sol. Abro os olhos e quero acender um cigarro. Mas estou em pausa e é favor não mexer.

Um velho na praia olha para mim. Mas eu estou em pausa. Por favor não mexer. A vontade de fumar é a mesma. É favor não mexer. Encosto-me de novo na barraca de olhos semicerrados. A luz encandeia. Sou só eu e o som do mar e os passos das pessoas e o chiar dos pneus no alcatrão ressequido.

O cão que não é meu vem para junto de mim. Acaba com o meu torpor e dolência. Faço-lhe uma festa no lombo quente e ele deita-se ao meu lado. Parece pertencer aquele cenário desde sempre. Não mexe. Está em pausa.

Decido-me finalmente pelo cigarro. O isqueiro não funciona. Uma, duas, três vezes e tento mais uma vez. A chama aparece e acendo o cigarro. Quebro a pausa. Já posso mexer-me. Sempre o mesmo movimento. A mão com o cigarro até à boca seca e depois o braço morto junto ao corpo. Sempre o mesmo movimento até que o cigarro se consuma. Movimentos ritmados. Cigarro para a boca. Braço ao longo do corpo. Fumo a sair da boca. E volta tudo ao início.

Não sinto nada. Não sabe a nada. Apago o cigarro a meio. Esmago-o na madeira carunchosa. A beata voa impelida por uma ligeira brisa que começa a soprar. O cão que não é meu continua em pausa. Observo os movimentos da sua respiração. Não abre os olhos. Deixa-se estar em sossego junto a mim. Somos só duas formas estendidas nas tábuas de madeira.

Levanto-me lentamente porque o corpo não quer obedecer ao cérebro. Ou será o cérebro que não quer obedecer ao corpo? Dou um impulso e fico de pé. O cão acorda. Corre para a praia. Agarro nas minhas coisas e dou alguns passos. Salto o muro.


Já não estou em pausa.

1 comentário:

  1. Susana, recebi o Prémio "Relíquia da Internet" e passei-o a ti.

    Vê o meu blog, por favor.

    Fica bem.


    Jorge lemos

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