quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

E se um desconhecido de repente a irrita?

O carro trava mesmo a tempo de não o atropelar. Teve ali a oportunidade de o assustar ou aleijar um bocadinho, mas não teve tempo para pensar fosse no que fosse. Quando deu pela situação já era tarde. Vinha tão distraída a chorar depois de uma discussão em casa que nem se apercebeu dele a atravessar a estrada. E ali está ele todo empinado, jornal debaixo do braço e a caminhar tão lentamente como se estivesse numa passerelle. Que irritante! Efectivamente merecia um safanão naquelas perninhas para aprender, pensa ela enquanto tenta acalmar-se. Faz a curva sem olhar para ele e com a ajuda dos óculos escuros deixa passar a ideia de que nem o reconheceu.

Conduz devagar pela avenida ao mesmo tempo que tenta regularizar a respiração. O coração também não está muito bem e parece querer saltar do peito. Não sabe se esta sensação que a assoma vem da situação de quase ter atropelado alguém ou do facto de ter sido ele o quase atropelado. Mas que chatice, pensa ela, e que raio de sorte a minha logo de manhã!

Estaciona o carro em frente ao bar onde já é habitual parar. Está quase vazio o que já é um bom prenúncio. Conhece ali toda a gente e de momento não está com muita vontade de fazer conversa da treta. Só quer tomar um bom cafezinho, ler os jornais locais em paz e trocar umas ideias sobre futebol com o dono do bar.

Enquanto toma o café e fuma o primeiro cigarro do dia não consegue deixar de pensar nele. Já tentou pegar nos jornais mas as letras ficam logo desfocadas porque está com a cabeça noutro sítio. Aquele homem é uma pedra no sapato e consegue irritá-la como mais ninguém é capaz de o fazer.

O coração continua a bater acelerado, mas isso já começa a ser um episódio normal. De cada vez que o encontra em algum lugar é capaz de ficar assim durante eternidades. Ele perturba-a mas não quer admitir que isso pode ser mais que uma simples implicância. Não é fácil admitir sentimentos que não quer sentir por um desconhecido quase conhecido. Falar com alguém sobre o assunto é ainda mais difícil, então guarda tudo algures dentro de si sem nunca achar uma saída para a dúvida. Para quê chatear os outros com um problema que não pode ser considerado um problema, pensa ela enquanto dá mais um gole no café já frio, e para que falar de algo que não tem propósito nem direcção? Vão pensar que está doida varrida e não devem estar muito longe da verdade pois também começa a pensar que foi desta que deu o “peido mestre”.

Na realidade já não sabe bem como tudo começou. Uma brincadeira no início, para tentar esquecer uma relação meio estranha e meio sem razão de ser. Pelo meio metem-se umas mensagens em jeito meio de galhofa e meio sérias e um telefonema meio esquisito e meio sem nexo. Uns olhares aqui e ali e sempre que possível. A toda a hora e todo o instante um destino mais que cruel no jogo do cruza e descruza de dois fados pouco predestinados a se fadarem. No começo não sabia mas eis que estavam reunidos os ingredientes para mais uma grande calamidade emocional. Mas para quê contrariar o destino se tem, tal como já vaticinado pela mãe, o olho virado para a remela, o pé para o chinelo e uma capacidade inata para relações não permitidas.

Hoje vai ser o princípio do fim, decide ela enquanto desfolha o jornal, este disparate tem que acabar! Mas mal vira a folha lá está uma fotografia de alguém tão parecido que até chateia. Como é possível, grita ela em silêncio, como é possível? Atira o jornal para cima da mesa e levanta-se de um pulo.

Sai do café irritada mas decidida a acabar com um dos maiores disparates da sua vida. Ela sabe que a solidão e capaz de pregar muitas partidas, tal como o destino, mas também ainda não perdeu a noção da realidade e sabe que chegou o momento de viver no mundo real e dizer basta. Basta, diz ela em voz alta enquanto caminha junto a praia, acorda para a vida miúda!

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