sábado, 14 de novembro de 2009

A carta

Sempre que penso em ti penso que as mulheres são umas parvas. Basta um homem para dar cabo da nossa vida. Apaixonamo-nos e quando damos por ela eles já são reis e senhores da nossa casa. É a pasta dos dentes que apertam pelo meio. São os chinelos espalhados no tapete do quarto. A roupa aparece em todas as divisões da casa. Quando decidem fazer um jantar romântico, acabamos a noite na cozinha a tentar solucionar o terramoto que sobre ela se abateu. Quando procuramos o comando da televisão o mais provável é ele estar soterrado nos restos de um qualquer petisco nocturno. O problema é que nunca sabemos quando chegou o tempo de gritar basta.

Eu acho que tu sabes quando eu estou prestes a explodir e a gritar o tal basta. Conheces aquele meu franzir da sobrancelha. Ficas com medo quando torço o nariz ao mesmo tempo que encaracolo uma mecha de cabelo. Então chegas a casa com presentes. Reservas mesa naquele restaurante que eu simplesmente amo. Dizes-me que estou linda, mesmo que esteja com aquele pijama ridículo com pintainhos, as pantufas com focinho de cão e o cabelo apanhado com uma mola já gasta.

Foste entrando na minha vida devagar. Fizeste-me sentir que eu já não podia viver sem ti. Mudaste as lâmpadas fundidas. Montaste o kit de prateleiras que já ganhava mofo na garagem. Sintonizaste todas as televisões da casa. Conseguiste até arranjar a máquina de lavar roupa. Depois começaste a trazer algumas das tuas coisas para minha casa. Até aquele quadro horroroso, que dizes ser de um pintor que conheceste no Porto, penduraste no meu escritório. Quando dei por ela já tinha a tua roupa nas minhas gavetas e nos meus armários. O teu computador passou a fazer parte da decoração da sala e o carregador do telemóvel jamais saiu da mesinha do meu hall.

Na altura achei piada. Estava completamente rendida ao teu sorriso e, pelos vistos, ao teu jeito para a bricolage. Estava apaixonada. Tu eras uma lufada de ar fresco na minha vida. O sexo era excelente e a forma como adormecias enrodilhado em mim deixava-me desarmada.

Agora começo a desesperar com as pequenas coisas que vejo em ti. As mulheres deviam vir incorporadas com uma campainha que nos desse um sinal de aviso quando estamos prestes a cometer uma insanidade.

Não consigo viver sem ti, mas também não consigo viver contigo. Já fazes parte da minha vida, mas arrasas com os meus nervos. Até te conhecer a minha vida era tão normal. A minha casa era o meu santuário. Tudo tinha o seu lugar. Cada objecto escolhido pela razão certa, na altura certa, para o espaço certo. Tudo era o espelho da mulher independente e de sucesso em que me transformei. Mas ao mesmo tempo sentia um vazio. Então, tu apareceste. Preencheste esse vazio com o teu sorriso, com a tua forma despreocupada de ser, a tua vontade desmedida de viver o dia-a-dia, a tua beleza.

Lembro-me daquele dia em que me obrigaste a sair do trabalho antes da hora. Ligaste mais de cem vezes. Inventei uma desculpa qualquer e saí. Já estavas à minha espera. Metemo-nos no teu carro. Conduziste durante horas. Eu sempre a perguntar para onde me levavas. Tu sorrias e dizias, não te preocupes que tenho tudo controlado. Eu já começava a ficar louca. Quando deixo de ter mão num assunto fico desesperada e tu sabes disso tão bem. Foi o melhor fim-de-semana da minha vida. Tu já tinhas feito as malas. Na minha mala não havia uma peça de roupa que combinasse com outra. De calçado só tinhas colocado um par de sapatilhas velho e uns chinelos. O que recordo com mais saudade foi aquele passeio a cavalo nas dunas da praia, mesmo ao pôr-do-sol. Só eu e tu. O mar demasiado azul e eu demasiado feliz.

Esta é mais uma carta que vou deitar para o lixo. Nunca chego ao fim. Nunca as chego a entregar. Daqui a pouco vais entrar por aquela porta com o teu sorriso. Vais espalhar as compras pela cozinha. Vais apertar-me contra ti e beijar-me. Vamos fazer amor logo ali no sofá. E eu vou pensar que a minha vida não está bem a ir pelo caminho que eu queria, mas mais uma vez não vou dizer nada.

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