quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O espelho

O espelho reflecte a sua imagem. Olha o seu corpo nu e aprecia cada pedaço do mesmo. Já não é o corpo jovem que tanto amava, mas não está assim tão mal. Sente um arrepio. Sempre teve medo da velhice, da degradação do corpo, da perda da juventude. Está a ficar mais gorda, mas só um bocadinho, pensa ela. Calça uns sapatos de salto alto que encontra perdidos no armário e vira-se de todos os ângulos. Coloca um chapéu de cowboy na cabeça e ri-se do ridículo da imagem no espelho. Retira o chapéu e prende os cabelos longos com as mãos. Gostava de ser mais alta, mas sempre foi baixa. Nada que uns sapatos de salto alto não corrigissem, mas odeia saltos altos. Olha os seios pequeninos e as ancas um pouco largas. A cintura miúda e a barriga muito lisa acentuam ainda mais a forma redonda das ancas. As pernas podiam ser mais altas, mas estão proporcionais com o resto do corpo. Deixa cair o cabelo claro sob a pele morena e olha-se mais uma vez no espelho.

Avança para a cama que ainda está desfeita. Do lado onde ele esteve ainda permanece a cova do seu corpo. Pega na almofada que ele usou e aperta-a contra o peito. Respira fundo o cheiro dele. Repara que a almofada tem alguns cabelos. Pega num e coloca-o dentro do livro que está na sua mesa-de-cabeceira. Atira-se para a cama no lado onde ele dormiu e deixa-se ali estar com a almofada apertada contra si. Pensa na noite, na entrega do seu corpo ao corpo dele. Quando se entrega a ele esquece o seu próprio corpo. Esquece os defeitos, as marcas da idade, as rugas, as gordurinhas a mais, tudo. Lembra os dois corpos suados e estremece de prazer. Ainda sente as mãos dele a percorrer o seu corpo. Ainda sente a pele suave dele em contacto com a sua. Ainda ouve o riso dele e as palermices que sempre diz enquanto fazem amor. Suspira e levanta-se.

Veste-se devagar como se de um ritual se tratasse. Gosta de apreciar o seu corpo no espelho enquanto o dissimula nas roupas. Já experimentou dezenas de peças mas nada parece agradar-lhe. Está a vestir-se para ele e quer que ele se aperceba disso logo que ela chegue ao café. Retira uma camisola de um dos montes de roupa espalhados pela cama e sabe que é a opção certa. Usou-a na primeira vez que saíram juntos e esse pensamento fá-la sorrir. Escolhe uma saia curta de ganga muito usada e veste-a lentamente para não rebentar com o fecho. Depois calça uns chinelos a combinar com a cor da camisola. Está com um aspecto muito despretensioso mas é isso mesmo que quer. Fecha a porta do armário e esquece o espelho.

A esplanada do café está cheia. Aguarda um bocado para que um grupo saia de uma das mesas. Está um calor insuportável mas ela adora sentir o ar abafado e o sol a bater em cheio no corpo. Olha para dentro do bar e vê-o. Cruzam o olhar e sorriem discretamente. Senta-se de costas para ele e pede um café e o jornal. Começam a chegar os amigos e a esplanada torna-se ruidosa de repente. Ouve-os distraída enquanto pensa nele. Mexe o café e acende um cigarro. Ele continua dentro do bar e ela mexe-se um pouco na cadeira e consegue vê-lo através dos espelhos da parede. Ele apercebe-se e olha-a também através dos espelhos. Estão assim alguns segundos. Depois pega no jornal ao mesmo tempo que toca o alarme de mensagem no telemóvel. Vê a mensagem e sorri. Responde-lhe. Sabe que vão trocar mensagens até que um deles vá embora do café. É sempre assim. Estão separados por um vidro mas não podem estar mais perto um do outro.

Enquanto ele sai do café e a olha despercebidamente ela disfarça um sorriso e continua a conversar com o grupo de amigos. Pelo canto do olho vê-o partir e sente o coração bater desgovernado. Sente cada pancada como um aviso, mas agora não quer saber de nada. Um dia vai sair magoada deste jogo que insistem em jogar, mas agora não quer saber de nada. Agora quer que a tarde acabe depressa para poder correr para junto dele, para poder refugiar-se nos seus braços, para poder fugir de novo para aquele mundo que é só deles. Toca o telemóvel e salta da cadeira para o atender. Do outro lado ouve uma música de fundo. Chama-o baixinho, mas ele não fala. Apetece-lhe rir e chorar ao mesmo tempo. Coloca-se de frente para os espelhos do café e olha-se enquanto ouve aquela música que é para ela.

Conduz devagar pela estrada que já conhece de cor. Não quer parecer muito apressada em chegar. Mas ao mesmo tempo parece que nunca mais chega. No espelho retrovisor vê a sua face afogueada e os olhos brilhantes. Sente um calafrio premonitório. Desde o primeiro dia em que estiveram juntos apercebeu-se que ele iria ser o seu calvário, mas insiste em mortificar o seu coração enquanto espera o último adeus. Devia deixá-lo agora mas como não consegue vai legar nele essa questão. Vai deixar ser ele a cansar-se, a abandoná-la, a esquecê-la. Vai sofrer mas nunca conheceu uma paixão sem dor. Sabe desde o início que este jogo só poderia ter um fim.

Vislumbra-o ao longe, no sitio do costume, enquanto deixa o carro deslizar suavemente pela rua. A imagem dele deixa-a sem respiração. Parece sempre que é a primeira vez e a última. Olha mais uma vez para o espelho retrovisor. A pele morena não consegue esconder o rubor das faces. Passa a mão pelo cabelo e morde os lábios. Sente as pulsações mais fortes. No estômago tem uma revolução de borboletas e o coração está cada vez mais apertado. Para o carro na berma da estrada. Ele sorri e ela respira fundo.

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