quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A consulta

Dama para rei. O às para o dois. Coluna completa. Sete para oito e oito para nove. Não, essa carta não. Que burra. Olho para a funcionária e apetece-me bater-lhe. Mentalmente vou fazendo o jogo de cartas que espreito no ecrã do computador enquanto espero que ela me entregue o recibo. Ela não me liga nenhuma. Está tão concentrada no jogo que nem repara que a impressora já cuspiu o meu documento. Alerto-a para o facto e ela não responde. Olha para mim com aquele ar de superioridade de quem está com a faca e o queijo na mão.

Observo a sala de espera que continua cheia de gente. Sinto que estão todos a olhar para mim. Apetece-me sair dali a correr, mas tenho que esperar pelo recibo. Sinto as lágrimas a chegar aos meus olhos e acho que não vou conseguir aguentar até sair daquela sala. Finalmente entrega-me a folha e dá-me umas boas tardes muito secas. Saio sem responder em passo acelerado ao mesmo tempo que as lágrimas começam a cair. Não consigo sustê-las.

Como é que eu poderia saber que uma consulta de rotina ia acabar desta forma? Não vou conseguir dizer-lhe. Como é que eu posso contar-lhe uma coisa destas sem parecer premeditado? Tenho a cabeça cheia de perguntas para as quais não consigo obter resposta. Penso duas vezes antes de entrar no carro, mas as lágrimas continuam a correr-me pela cara e não quero que me vejam assim.

Acendo um cigarro e ponho o carro em marcha. Tento lembrar-me de como tudo era no início, antes de começarem os conflitos, as discussões, as desconfianças, os ciúmes. Éramos tão felizes que nada parecia poder perturbar essa felicidade. Agora somos dois estranhos a morar na mesma casa. Meço cada palavra que lhe digo, cada acto, cada desejo. Ele já não quer saber e eu não sei se o medo que sinto é de o perder ou de voltar a ser feliz se ele for embora. Já tentei dizer-lhe tantas e tantas coisas, mas nunca consigo chegar ao fim da conversa. Ele muda de assunto e eu perco-me no labirinto das suas palavras. Peço-lhe para que seja sincero comigo e ele responde que não há problema algum, que está tudo bem, que gosta de mim. Eu já não acredito mas finjo que sim.

Estaciono o carro junto ao dele na garagem e começo a ensaiar a melhor forma de lhe dar a noticia. Querido estou grávida! Não, é muito vulgar. Como é possível ter que ensaiar uma coisa que nos deveria deixar a explodir de felicidade? Tenho uma vida a crescer dentro de mim e apenas sinto vontade de chorar. Imaginei tantas vezes este dia, mas nunca pensei ficar tão agoniada. Meu amor tenho uma coisa para te contar. Vamos ter um bebé!

Enquanto procuro as chaves de casa invade-me um medo estúpido de abrir a porta. Querido vamos ser pais! Continuo a ensaiar mentalmente o meu discurso e nada parece suficientemente natural. Como cheguei a este ponto? Como chegámos a este ponto? Entro e está tudo silencioso. O carro dele estava na garagem, mas ele não está em casa. Em cima da mesa da entrada tenho um bilhete: “Volto já. Beijos”. Deve ter tentado ligar-me, mas eu ainda tenho o telemóvel desligado. Assim ganho mais tempo para pensar.

Atiro-me para o sofá da sala e ligo mecanicamente a televisão. Passo por todos os canais e nada prende a minha atenção. Penso nas palavras do médico: “Estás grávida. Parabéns.”. Naquele momento senti um vazio enorme, um choque. Acho que deve ter percebido a minha inquietação, mas não disse nada. Agora penso na cara dele a ouvir as minhas palavras. Aquelas palavras que eu ainda não sei como vou juntar para formar uma frase com nexo.

Toca a campainha. Não me apetece levantar, mas pode ser urgente. Arrasto-me até à porta. Abro e ali está ele, com aquele sorriso que há muito já não lhe via. Tem os braços cheios de caixas coloridas, de bonecos e um berço. Atiro-me nos seus braços e começam a cair-me de novo as lágrimas.

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